Fichamento do livro Arqueologia do Saber
Cremilton Souza
As
unidades do discurso
O
emprego dos conceitos de descontinuidade, de ruptura, de limiar, de limite, de
série, de transformação coloca, a qualquer análise histórica, não somente
questões de procedimento, mas também problemas teóricos. (FOUCAULT, 2013, p.
25). [...] Só serão considerados em um campo particular: nessas disciplinas tão
incertas de suas fronteiras, tão indecisas em seu conteúdo, que se chamam
histórias das ideias, ou do pensamento, ou das ciências, ou dos conhecimentos.
(FOUCAULT, 2013, p. 25).
Há,
em primeiro lugar, um trabalho negativo a ser realizado: libertar-se de todo um
jogo de noções que diversificam, cada um à sua maneira, o tema da continuidade.
Elas sem dúvida, não têm uma estrutura conceitual bastante rigorosa; sua função
é precisa. Assim é a noção de tradição: ela visa dar uma importância temporal
singular a um conjunto de fenômenos, ao mesmo tempo sucessivos e idênticos (ou
pelo menos, análogos); permite repensar a dispersão da história na forma desse
conjunto; autoriza reduzir a diferença característica de qualquer começo, para
retroceder, sem interrupção, na atribuição indefinida da origem (FOUCAULT,
2013, p. 25).
As
noções de desenvolvimento e de evolução: elas permitem reagrupar uma sucessão
de acontecimentos dispersos; relacioná-los a um único e mesmo princípio
organizador; submetê-los ao poder exemplar da vida com seus jogos de adaptação,
sua capacidade de inovação, a incessante correlação de seus diferentes
elementos, seus sistemas de assimilação de trocas. (FOUCAULT, 2013, p. 26).
O
mesmo acontece, ainda, com as noções de “mentalidade” ou de “espírito”, que
permitem estabelecer entre os fenômenos simultâneos ou sucessivos de uma
determinada época uma comunidade de sentido, ligações simbólicas, um jogo de
semelhança e de espelho – ou que fazem surgir, como princípio de unidade e de
explicação, a soberania de uma consciência coletiva. (FOUCAULT, 2013, p. 26).
Grandes
tipos de discurso, ou das formas ou dos gêneros que opõem umas às outras,
ciência, literatura, filosofia, religião, história, ficção [...] Nós próprios
não estamos seguros do uso dessas distinções no nosso mundo de discursos, e
ainda mais quando se trata de analisar conjuntos de enunciados que eram, na
época de sua formulação, distribuídos, repartidos e caracterizado de modo
inteiramente diferente (FOUCAULT, 2013, p. 27).
De
qualquer maneira, esses recortes quer se trate dos que admitimos ou dos que são
contemporâneos dos discursos estudados são sempre, eles próprios, categorias
reflexivas, princípios de classificação, regras normativas, tipos
institucionalizados (FOUCAULT, 2013, p. 27).
As
margens de um livro jamais são nítidas nem rigorosamente determinadas: além do
título, das primeiras linhas e do ponto final, além da sua configuração interna
e da forma que lhe dá autonomia, ele está preso em um sistema de remissões a
outros livros (FOUCAULT, 2013, p. 28). [...] Esse jogo de remissões não é
homólogo, conforme se refira a um comentário de matemática, a um comentário de
textos, a uma narração histórica...
Admite-se
que deve haver um nível (tão profundo quanto é preciso imaginar) no qual a obra
se revela, em todos seus fragmentos, mesmo nos mais minúsculos e os menos
essenciais, como a expressão do pensamento, ou da experiência, ou da
imaginação, ou do inconsciente do autor. (FOUCAULT, 2013, p. 29).
Os
discursos que se pretende analisar: renunciar a dois temas que estão ligados um
ao outro que se opõem. Um quer que jamais seja possível assinalar, na ordem do
discurso, a irrupção de um acontecimento verdadeiro; que além de qualquer
começo aparente há sempre uma origem secreta – tão secreta e tão originária que
delas jamais nos poderemos nos reapoderar inteiramente. (FOUCAULT, 2013, p.
30).
O
discurso manifesto não passaria, afinal de contas, da presença repressiva do
que ele diz; e esse não dito seria um vazio minado, do interior, tudo que se
diz. (FOUCAULT, 2013, p. 30).
Trata-se,
de fato, de arrancá-las de sua quase evidência, de liberar os problemas que
colocam; reconhecer que não são o lugar tranquilo a partir do qual outras
questões podem ser levantadas (sobre sua estrutura, sua coerência, sua
sistematicidade, suas transformações) mas, que colocam por si mesmas todo um
feixe de questões (Que são? Como defini-las? Ou limitá-las? A que tipos
distintos de leis podem obedecer? De que articulação são suscetíveis? A que
subconjuntos podem dar lugar? Que fenômenos específicos fazem aparecer no campo
do discurso?). (FOUCAULT, 2013, p. 31-32).
Trata-se
de um domínio imenso, mas que pode definir: é constituído pelo conjunto de
todos os enunciados efetivos (quer tenha sido falados ou escritos), em sua
dispersão de acontecimentos e na instância própria de cada um. (FOUCAULT, 2013,
p. 32).
O
campo dos acontecimentos discursivos, em compensação, é o conjunto sempre
finito e efetivamente limitado das únicas sequências linguísticas que tenham
sido formuladas; elas podem ser inumeráveis e podem, por sua massa, ultrapassar
toda capacidade de registro, de memória, ou de leitura: elas constituem,
entretanto, um conjunto finito. (FOUCAULT, 2013, p. 32).
Não
se busca, sob o que está manifesto, a conversa semissilenciosa de um outro
discurso: deve-se mostrar por que não poderia ser outro, como exclui qualquer
outro, como ocupa, no meio dos outros e relacionado a eles, um lugar que nenhum
outro poderia ocupar (FOUCAULT, 2013, p. 32).
Dessas
relações explícitas que são colocadas e ditas pelo próprio discurso, quando
assume a forma do romance, ou quando se inscreve numa série de teoremas
matemáticos (FOUCAULT, 2013, p. 36).
Os
discursos manifestos: não é, pois, uma interpretação dos fatos enunciativos que
poderiam trazê-los à luz, mas a análise de sua coexistência, de sua sucessão,
de seu funcionamento mútuo, de sua determinação recíproca, de sua transformação
independente ou correlativa (FOUCAULT, 2013, p. 36).
As
formações discursivas
Decidi-me
a não negligenciar nenhuma forma de descontinuidade, de corte, de limiar ou de
limite. [...] Decidi-me a descrever enunciados no campo do discurso e as
relações de que são suscetíveis. (FOUCAULT, 2013, p. 38).
Há
por exemplo, enunciados que apresentam – e isso a partir de uma data que se
pode determinar facilmente – como referentes à economia política, ou à
biologia, ou à psicopatologia; há, também os que se apresentam como
pertencentes a essas continuidades milenárias – quase sem origem – que chamamos
gramática ou medicina (FOUCAULT, 2013, p. 38).
Os
enunciados: diferentes em sua forma, dispersos no tempo, formam um conjunto
quando se refere a um único e mesmo objeto (FOUCAULT, 2013, p. 39).
Logo
percebi que a unidade do objeto “loucura” não nos permite individualizar um
conjunto de enunciados e estabelecer entre eles uma relação ao mesmo tempo
descritível e constante (FOUCAULT, 2013, p. 39).
Cada
discurso por sua vez, constitui e elabora até transformá-lo inteiramente.
Assim, a questão é saber se a unidade de um discurso é feita pelo espaço onde
diversos objetos perfilam e continuamente se transformam, e não pela
permanência e singularidade de um objeto. A relação característica que permitiria
individualizar um conjunto de enunciados referentes à loucura não seria, então,
a regra de emergência simultânea ou sucessiva dos diversos objetos que aí são
nomeados. (FOUCAULT, 2013, p. 40).
De
modo paradoxal, definir um conjunto de enunciados no que ele tem de individual
consistiria em descrever a dispersão desses objetos, apreender todos os
interstícios que os separam, medir as distâncias que reinam entre eles – em
outras palavras, formular sua lei de repartição (FOUCAULT, 2013, p. 41).
Seria
preciso caracterizar e individualizar a coexistência desses enunciados
dispersos e heterogêneos; o sistema que rege sua repartição, como se apoiam uns
nos outros, a maneira pela qual se supõem ou se excluem, a transformação que
sofrem, o jogo de seu revezamento, de sua posição e de sua substituição
(FOUCAULT, 2013, p. 42).
O
conceito de juízo definido como a forma geral e normativa de qualquer frase, os
conceitos de sujeito de predicativo reagrupados sob a categoria mais geral de
nome, o conceito de verbo utilizado como equivalente do de ligação lógica, o
conceito de palavra definido como signo de uma representação (FOUCAULT, 2013,
p. 42).
Em
um domínio de objetos cheio, fechado, contínuo, geograficamente bem recortado.
Deparei-me, entretanto, com séries lacunares e emaranhadas, jogos de
diferenças, de desvios de substituições, de transformações. (FOUCAULT, 2013, p.
46).
Chamaremos
de regras de formação as condições a que estão submetidos os elementos dessa
repartição (objetos, modalidade de enunciação, conceitos, escolhas temáticas)
(FOUCAULT, 2013, p. 47).
As
regras de formação são condições de existência (mas também de coexistência, de
manutenção, de modificação e de desaparecimento) em uma dada repartição
discursiva (FOUCAULT, 2013, p. 47).
A formação dos objetos
É
preciso fazer agora um levantamento das direções abertas e saber se podemos dar
conteúdo a esta noção, apenas esboçada, de “regras de formação”. (FOUCAULT,
2013, p. 49).
Tomemos
o exemplo do discurso da psicopatologia a partir do século XIX.
A
colocação, no início do século, de um novo modo de exclusão e de exclusão e de
inserção do louco no hospital psiquiátrico; e a possibilidade de percorrer de
volta a fieira de certas noções atuais até Esquirol, Heinroth ou Pinel.
(FOUCAULT, 2013, p. 49).
Da
paranoia podemos retroceder até a monomania, do quociente intelectual à noção
primeira da imbecilidade, da paralisia geral à encefalite crônica, da neurose
de caráter à loucura sem delírio (FOUCAULT, 2013, p. 49).
Seria
preciso inicialmente demarcar as superfícies primeiras de sua emergência:
mostrar onde podem surgir, para que possam, em seguida, ser designadas e
analisadas essas diferenças individuais que, segundo os graus de racionalização,
os códigos conceituais e os tipos de teoria, vão receber a qualificação de
doença, alienação, anomalia, demência, neurose ou psicose, degenerescência etc.
(FOUCAULT, 2013, p. 50).
O
discurso da psicopatologia só teria, em seguida, que relacionar, classificar e
nomear, eleger, recobrir, finalmente de uma trama de palavras e frases: não são
as famílias – com suas normas, suas proibições, seus limiares de sensibilidade
– que determinam os loucos e propõem “doentes” para a análise ou decisão dos
psiquiatras (FOUCAULT, 2013, p. 52).
O
discurso é algo inteiramente diferente do lugar em que vêm se depositar e se
superpor, como em uma simples superfície de inscrição, objetos que teriam sido
instaurados anteriormente. (FOUCAULT, 2013, p. 52).
Se,
em nossa sociedade, em uma época determinada, o delinquente foi psicologizado e
patologizado, se a conduta transgressora pôde dar lugar a toda uma série de
objetos de saber, deve-se ao fato de que, no discurso psiquiátrico, foi
empregado um conjunto de relações determinadas. Relação entre planos de
especificação, como as categorias penais e os graus de responsabilidade
diminuída, e planos psicológicos de caracterização (FOUCAULT, 2013, p. 53).
Uma
formação discursiva se define (pelo menos quanto a seus objetos) se puder
estabelecer um conjunto semelhante; se puder mostrar como qualquer objeto do
discurso em questão aí encontra seu lugar e sua lei de aparecimento; se puder
mostrar que ele pode dar origem, simultânea ou sucessivamente, a objetos que se
excluem, sem que ele próprio tenha de se modificar (FOUCAULT, 2013, p. 54).
Não
se pode falar de qualquer coisa em qualquer época; não é fácil dizer alguma
coisa nova; não basta abrir os olhos, prestar atenção, ou tomar consciência,
para que novos objetos logo se iluminem e, na superfície do solo, lancem sua
primeira claridade (FOUCAULT, 2013, p. 54).
Essas
relações são estabelecidas entre instituições, processos econômicos e sociais,
formas de comportamentos, sistemas de normas, técnicas, tipos de classificação,
modos de caracterização [...] Elas não definem a constituição interna do objeto,
mas o que lhe permite aparecer, justapor-se a outros objetos, situar-se em
relação a eles, definir sua diferença, sua irredutibilidade e, eventualmente,
sua heterogeneidade; enfim, ser colocado em um campo de exterioridade
(FOUCAULT, 2013, p. 55).
As relações
discursivas, como se vê, não internas ao discurso: não ligam entre si os
conceitos e as palavras; não estabelecem entre as frases ou as proposições uma
arquitetura dedutiva ou retórica. Mas não são, entretanto, relações exteriores
ao discurso, que o limitariam ou lhe imporiam certas formas, ou o forçariam, em
certas circunstâncias, a enunciar certas coisas. [...] Elas estão, de alguma
maneira, no limite do discurso (FOUCAULT, 2013, p. 56).
Mas
não se trata, aqui, de neutralizar o discurso, transformá-lo em signo de outra
coisa e atravessar-lhe a espessura para encontrar o que permanece
silenciosamente aquém dele, e sim, pelo contrário, mantê-lo em sua
consistência, fazê-lo surgir na complexidade que lhe é própria (FOUCAULT, 2013,
p. 58).
Quando
se descreve a formação dos objetos de um discurso, tenta-se identificar os
relacionamentos que caracterizam uma prática discursiva e não se determina uma
organização léxica nem as escansões de um campo semântico: não questiona o
sentido dela, em sua época, às palavras “melancolia” ou “loucura sem delírio”, [...]
Análise dos conteúdos léxicos define tanto os elementos de significação de que
dispõem os sujeitos falantes... (FOUCAULT, 2013, p. 59).
A formação das modalidades enunciativas
Descrições
qualitativas, narrações biográficas, demarcação, interpretação e recorte dos
signos, raciocínios por analogia, dedução, estimativas estatísticas,
verificações experimentais, e muitas outras formas de enunciados (FOUCAULT,
2013, p. 61).
É
preciso descrever também os lugares institucionais de onde o médico obtém seu
discurso, e onde esse encontra sua origem legítima e seu ponto de aplicação
[...] Esses lugares são, para nossa sociedade, o local de uma observação
constante, codificada, sistemática, assegurada por pessoal médico diferenciado
e hierarquizado (FOUCAULT, 2013, p. 62).
As
posições do sujeito se definem igualmente pela situação que lhe é possível
ocupar em diversos domínios ou grupos de objetos: ele é um sujeito que
questiona, segundo uma certa grade de interrogações explícitas ou não, e que
ouve, segundo um certo programa de informação; é sujeito que observa, segundo
um quadro de traços característicos (FOUCAULT, 2013, p. 63).
Se
no discurso clínico o médico é sucessivamente o questionador soberano e direto,
o olho que observa, o dedo que toca, o órgão de decifração dos sinais, o ponto
de integração de descrições já feitas, o técnico de laboratório, é porque todo
um feixe de relações se encontra em jogo; relações entre o espaço hospitalar,
como local ao mesmo tempo de assistência, de observação purificada e
sistemática, e de terapêutica, parcialmente testada, parcialmente experimental
(FOUCAULT, 2013, p. 64).
As
modalidades diversas das enunciações não estão relacionadas à unidade de um
sujeito – quer se trate do sujeito tomado como pura instância fundadora de
racionalidade, ou do sujeito tomado como função empírica de síntese. Nem o
conhecer o “conhecer”, nem os “conhecimentos” (FOUCAULT, 2013, p. 65).
Na
análise proposta, as diversas modalidades de enunciação, em lugar de remeterem
à síntese ou à função unicamente de um sujeito, manifestam sua dispersão: nos
diversos status, nos diversos lugares, nas diversas posições que pode ocupar ou
receber quando exerce um discurso, na descontinuidade dos planos onde se fala”
(FOUCAULT, 2013, p. 66).
A formação dos conceitos
A
experiência, de qualquer forma, merece ser tentada – e ela o foi diversas
vezes. Em compensação, se tomamos uma escala maior e se escolhemos, como
marcos, disciplinas como a gramática, ou a economia, ou estudo dos seres vivos
[...] o jogo de conceitos que vemos aparecer não obedece a condições tão
rigorosas: sua história não é, pedra por pedra, a construção de um edifício”
(FOUCAULT, 2013, p. 67).
A
configuração do campo enunciativo compreende, também, formas de coexistência.
Estas delineiam, inicialmente, um campo de presença (isto é, todos os
enunciados já reformulados em alguma outra parte e que são retomados em um
discurso a título de verdade admitida, de descrição exata, de raciocínio fundado
ou de pressuposto necessário, e também os que são criticados, discutidos e
julgados, assim como os que são rejeitados e excluídos)” (FOUCAULT, 2013, p.
68).
Não
se toma como objeto de análise a arquitetura conceitual de um texto isolado, de
uma obra individual ou de uma ciência em um dado momento” (FOUCAULT, 2013, p.
71).
O
nível pré-conceitual que assim destacamos não remete nem a um horizonte de
idealidade nem a uma gênese empírica das abstrações. De um lado, não é um
horizonte de idealidade colocado, descoberto ou instaurado por um gesto
fundador – e de tal forma originário que escaparia a qualquer inserção
cronológica; não é, nos confins da história, um a priori inesgotável, ao mesmo
na retaguarda, porque escaparia a qualquer começo, a qualquer reconstituição
genética, e afastado, porque jamais poderia ser contemporâneo de si mesmo em
uma totalidade explícita” (FOUCAULT, 2013, p. 73).
Para
analisar as regras de formação dos objetos, vimos que não seria necessário nem
enraizá-los nas coisas nem relacioná-los ao domínio das palavras; para analisar
a formação dos tipos enunciativos, não seria necessário relacioná-los nem ao
sujeito cognoscente nem a uma individualidade psicológica. Da mesma forma, para
analisar a formação dos conceitos, não é preciso relacioná-los nem ao horizonte
da idealidade nem ao curso empírico das ideias” (FOUCAULT, 2013, p. 75).
A formação das estratégias
Discursos,
como a economia, a medicina, a gramática, a ciência dos seres vivos, dão lugar
a certas organizações de conceitos, a certos reagrupamentos de objetos, a
certos tipos de enunciação, que formam, segundo seu grau de coerência, de rigor
e de estabilidade, temas ou teorias” (FOUCAULT, 2013, p. 76).
Determinar
os pontos de difração possíveis do discurso. Tais pontos se caracterizam
inicialmente como pontos de incompatibilidade: dois objetos ou dois tipos de
enunciação, ou dois conceitos, podem aparecer na mesma formação discursiva, sem
poderem entrar – sob pena de contradição manifesta ou inconsequência – em uma única
e mesma série de enunciados” (FOUCAULT, 2013, p. 78).
A
determinação das escolhas teóricas realmente efetuadas depende também de uma
outra instância. Essa instância se caracteriza, de início, pela função que deve
exercer o discurso estudado em um campo de práticas não discursivas” (FOUCAULT,
2013, p. 80).
Não
há (ou pelo menos não se pode admitir para a descrição histórica cuja
possibilidade aqui traçamos) uma espécie de discurso ideal, ao mesmo tempo
último e intemporal, que escolhas de origem extrínseca teriam pervertido,
desordenado, reprimido, lançado para um futuro talvez muito longínquo; não se
deve supor, por exemplo, que existam, sobre a natureza ou sobre a economia,
dois discursos superpostos e misturados...” (FOUCAULT, 2013, p. 82).
Observações e consequências
De
início, eu havia questionado as unidades preestabelecidas segundo as quais
escandimos tradicionalmente o domínio indefinido, monótono, abundante do
discurso (FOUCAULT, 2013, p. 84).
Mesmo
no caso em que seus limites históricos e a especificidade de sua organização
são bastante fáceis de ser percebidos (como prova a gramática geral ou a
história natural), essas formações discursivas colocam problemas de demarcação
bem mais difíceis que o livro ou a obra” (FOUCAULT, 2013, p. 84).
Vimos
que – e, sem dúvida, não há necessidade de voltarmos o assunto -, quando se
fala de um sistema de formação, não se compreende somente a justaposição, a
coexistência ou a interação de elementos heterogêneos (instituições, técnicas,
grupos sociais, organizações perceptivas, relações entre discursos diversos),
mas seu relacionamento – sob uma forma bem determinada – estabelecido pela
prática discursiva.” (FOUCAULT, 2013, p. 85-86).
Os
níveis inferiores não são independentes dos que lhes são superiores” (FOUCAULT,
2013, p. 87).
O
que se descreve como “sistemas de formação” não constitui a etapa final dos
discursos, se por este termo entendemos os textos (ou falas) tais como se
apresentam com seu vocabulário, sintaxe, estrutura lógica ou organização
retórica.” (FOUCAULT, 2013, p. 90).
Atrás
da fachada visível do sistema, supomos a rica incerteza da desordem; e, sob a
fina superfície do discurso: um “pré-sistemático” que não é da ordem do
sistema; um “pré-discursivo” que se apoia em um essencial mutismo.” (FOUCAULT,
2013, p. 90).
O enunciado e o arquivo
Suponho,
agora, que o risco tenha sido aceito; que se tenha admitido de bom grado, para
articular a grande superfície dos discursos, essas figuras um pouco estranhas,
um pouco longínquas, que chamei formações discursivas; que se tenha posto de
lado, não de forma definitiva, mas por algum tempo e por uma questão de método,
as unidades tradicionais do livro e da obra; que se deixe de tomar como
princípio de unidade as leis de construção do discurso ( com a organização
formal que daí resulta), ou a situação do sujeito falante (com o contexto e o
núcleo psicológico que a caracterizam); que não mais se relacione o discurso ao
solo inicial de uma experiência nem à instância a priori de um conhecimento;
mas que nele mesmo interroguemos sobre as regras de sua formação ” (FOUCAULT,
2013, p. 95).
Mas,
de fato, de que falei até aqui? Qual foi o objeto de minha pesquisa? E estava
em meus propósitos descrever o quê? “Enunciados” – nessa descontinuidade que os
liberta de todas as formas em que, tão facilmente, aceitava-se fossem tomados,
e ao mesmo tempo no campo geral, ilimitado, aparentemente sem forma, do
discurso (FOUCAULT, 2013, p. 96).
E
logo o problema se coloca: se o enunciado é a unidade elementar do discurso, em
que consiste? Quais são seus traços distintivos? Que limites devemos nele
reconhecer? Essa unidade é ou não idênticas à que os lógicos designaram pelo
termo proposição...” (FOUCAULT, 2013, p. 97).
Não
acredito que a condição necessária e suficiente para que aja enunciado seja a
presença de uma estrutura proposicional definida, e que se possa falar de
enunciado todas as vezes em que houver proposição e apenas neste caso.”
(FOUCAULT, 2013, p. 97).
E a
frase? Não seria preciso admitir uma equivalência entre frase e enunciado?
Sempre que existe uma frase gramaticalmente isolável, pode-se reconhecer a
existência de um enunciado independente; mas, em compensação, não se pode mais
falar de enunciado quando, sob a própria frase, chega-se ao nível de seus
constituintes” (FOUCAULT, 2013, p. 98).
Entretanto,
a equivalência está longe de ser total, e é relativamente fácil citar
enunciados que não correspondem à estrutura linguística das frases. Quando
encontramos em uma gramática latina uma série de palavras dispostas em coluna –
amo, amas, ama -, não lidamos com uma frase, mas com um enunciado das
diferentes flexões pessoais do indicativo presente do verbo amar” (FOUCAULT,
2013, p. 99).
O
ato ilocutório não é o que ocorreu antes do momento do enunciado (no pensamento
do autor ou no jogo de suas intenções); não é o que se pôde produzir, depois do
próprio enunciado, no sulco que deixou atrás de si e nas consequências que
provocou; mas sim o que se produziu pelo próprio fato de ter sido enunciado – e
precisamente esse enunciado (e nenhum outro) em circunstâncias bem
determinadas.” (FOUCAULT, 2013, p. 100).
Quando
se quer individualizar os enunciados, não se pode admitir sem reservas nenhum
dos modelos tomados de empréstimo à gramática, à lógica ou à “análise”
(FOUCAULT, 2013, p. 101).
Será
preciso finalmente admitir que o enunciado não pode ter caráter próprio e que
não é suscetível de definição adequada, na medida em que é, para todas as
análises da linguagem, a matéria extrínseca a partir da qual elas determinaram
seu objeto? Será preciso admitir que qualquer série de signos, de figuras, de
grafismos ou de traços – não importa qual seja sua organização ou probabilidade
– é suficiente para constituir um enunciado, e que cabe à gramática dizer se
trata ou não de uma frase; lógica, definir-se se ela comporta ou não uma forma
proposicional; e, à análise, precisar qual é o ato de linguagem que pode
atravessá-la? Neste caso, seria necessário admitir que há enunciado desde que
existam vários signos justapostos – e por que não, talvez? – desde que exista
um e somente um. O limiar do enunciado seria o limiar da existência dos signos”
(FOUCAULT, 2013, p. 102).
O
quadro aleatório de números que os estatísticos podem vir a utilizar é uma
sequência de símbolos numéricos que não estão ligados entre si por nenhuma
estrutura de sintaxe; ele é, entretanto, um enunciado: o de um conjunto de
números obtidos por processos que eliminam tudo que poderia aumentar a probabilidade
dos resultados sucessivos” (FOUCAULT, 2013, p. 104).
O enunciado
não é uma unidade do mesmo gênero da frase, proposição ou ato da linguagem; não
se apoia nos mesmos critérios; mas não é tampouco uma unidade como um objeto
material poderia ser, tendo seus limites e sua independência” (FOUCAULT, 2013,
p. 104).
A função enunciativa
Inútil
procurar o enunciado junto aos agrupamentos unitários de signos. Ele não é nem
sintagma, nem regra de construção, nem forma canônica de sucessão e de
permutação, mas sim o que faz com que existam tais conjuntos de signos e permite
que essas regras e essas formas se atualizem (FOUCAULT, 2013, p. 106).
Consideremos,
mais uma vez, o exemplo dos signos moldados ou delineados em uma materialidade
definida e agrupados de um modo, arbitrário ou não, mas que, de qualquer forma,
não é gramatical, como o teclado de uma máquina de escrever ou um punhado de
caracteres tipográficos (FOUCAULT, 2013, p. 106).
Uma
série de signos se tornará enunciado com a condição de que tenha com “outra
coisa” (que lhe pode ser estranhamente semelhante, e quase idêntica como no
exemplo escolhido) uma relação específica que se refira a ela mesma – e não à
sua causa, nem a seus elementos (FOUCAULT, 2013, p. 107).
Não
é preciso tampouco confundir a relação entre um enunciado e o que ele anuncia
com relação entre uma proposição e seu referente. Sabemos que os lógicos dizem
que uma proposição como “A montanha de ouro está na Califórnia” não pode ser
verificada porque não tem referente: sua negação não é, pois, nem mais nem
menos verdadeira que sua afirmação (FOUCAULT, 2013, p. 108).
Como
definir a relação que caracterizaria, exclusivamente, o enunciado – relação que
parece implicitamente suposta pela frase ou pela proposição e que lhes aparece
como anterior? Como separá-la, em si mesma, das relações de sentido ou dos
valores de verdade com os quais usualmente a confundimos? Um enunciado –
qualquer que seja e por mais simples que o imaginemos – não tem como correlato
um indivíduo ou objeto singular que seria designado por determinada palavra da
frase (FOUCAULT, 2013, p. 110). [...] No caso de um enunciado como “A montanha
de ouro está na Califórnia”, o correlato não é essa formação real ou
imaginária, possível ou absurda, designada pelo sintagma nominal que exerce a
função de sujeito (FOUCAULT, 2013, p. 110).
Correlato
do enunciado é um conjunto de domínios em que tais objetos podem aparecer e em
que tais relações podem ser assinaladas (FOUCAULT, 2013, p. 110).
Um
enunciado, além disso, se distingue de uma série de qualquer de elementos
linguísticos, porque mantém com um sujeito uma relação determinada que se deve
isolar, sobretudo, das relações com as quais poderia ser confundida, e cuja
natureza é preciso especificar (FOUCAULT, 2013, p. 111).
Esse
sujeito exterior à frase não seria, simplesmente, o indivíduo real que
articulou ou escreveu? Não há signos sem alguém para proferi-los ou, de
qualquer forma, sem alguma coisa para elemento do emissor (FOUCAULT, 2013, p.
112) [...] Para que uma série de signos exista, é preciso – segundo o sistema
das casualidades – um “autor” ou uma instância produtora (FOUCAULT, 2013, p.
112).
Seria
uma particularidade da literatura que o autor dela se ausentasse, se
escondesse, se destacasse ou se separasse; e dessa dissociação não se deveria
concluir, universalmente, que o sujeito do enunciado é distinto em tudo –
natureza, status, função, identidade – do autor da formulação (FOUCAULT, 2013,
p. 113).
A
posição do sujeito está ligada à existência de uma operação ao mesmo tempo
determinada e atual; em ambas, o sujeito do enunciado é também o sujeito da
operação (aquele que estabelece a definição é também aquele que a enuncia;
aquele que coloca a existência é, ao mesmo tempo, quem coloca o enunciado)
(FOUCAULT, 2013, p. 115).
Em
compensação, a função enunciativa – mostrando assim que não é pura e simples
construção de elementos prévios – não pode se exercer sobre uma frase ou
proposição em estado livre (FOUCAULT, 2013, p. 118).
O
enunciado não é projeção direta, sobre o plano da linguagem, de uma situação
determinada ou de um conjunto de representações. Não é simplesmente a
utilização, por um sujeito falante, de um certo número de elementos e regras
linguísticas (FOUCAULT, 2013, p. 120).
Sobre
esse cenário da coexistência enunciativa se destacam, em um nível autônomo e
descritível, as relações gramaticais entre frases, as relações lógicas entre
proposições, as relações metalinguísticas entre uma linguagem – objeto e aquela
que lhe define as regras, as relações retóricas entre grupos ou elementos de
frases (FOUCAULT, 2013, p. 121).
Enunciado
é sempre apresentado através de uma espessura material, mesmo dissimulada,
mesmo se, apenas surgida, estiver condenada a se desvanecer (FOUCAULT, 2013, p.
122).
Um
único e mesmo sujeito pode repetir várias vezes a mesma frase; haverá igual
número de enunciações distintas no tempo. A enunciação é um acontecimento que
não se repete; tem uma singularidade situada e datada que não pode se reduzir
(FOUCAULT, 2013, p. 123).
A
materialidade do enunciado não é definida pelo espaço ocupado ou pela data da
formulação, mas por um status de coisa ou de objeto, jamais definitivo, mas
modificável, relativo e sempre suscetível de ser novamente posto em questão
(FOUCAULT, 2013, p. 125).
A
constância do enunciado, a manutenção de sua identidade através dos
conhecimentos singulares das enunciações, seus desdobramentos através da
identidade das formas, tudo isso é função do campo de utilização no qual ele se
encontra inserido (FOUCAULT, 2013, p. 127).
A descrição dos enunciados
O
front da análise encontra-se consideravelmente deslocado; quis retomar essa
definição do enunciado que tinha sido, no início, deixada em suspenso. Tudo se
passara e tudo fora dito como se o enunciado fosse uma unidade fácil de ser
estabelecida, cujas possibilidades e leis de agrupamento era importante
descrever (FOUCAULT, 2013, p. 129).
Se
aceitamos chamar performance verbal, ou talvez melhor performance linguística,
todo conjunto de signos efetivamente produzidos a partir de uma língua natural
(ou artificial), poderemos chamar formulação o ato individual (ou, a rigor,
coletivo) que faz surgir, em um material qualquer e segundo uma forma
determinada, esse grupo de signos (FOUCAULT, 2013, p. 130).
Os
linguistas têm o hábito de dar à palavra discurso um sentido inteiramente
diferente; lógicos e “analistas” usam de forma diferente o termo enunciado
(FOUCAULT, 2013, p. 131).
Vê-se,
em particular, que a análise dos enunciados não pretende ser uma descrição
total, exaustiva da “linguagem” ou de “o que foi dito”. Em toda densidade
resultante das performances verbais, ela se situa num nível particular que deve
ser separado dos outros, caracterizado em relação a eles e abstraído (FOUCAULT,
2013, p. 132).
O
enunciado é, ao mesmo tempo, não visível e não oculto. [...] Não oculto, por
definição, já que caracteriza as modalidades de existência próprias de um
conjunto de signos efetivamente produzidos (FOUCAULT, 2013, p. 133).
O
enunciado não é uma unidade ao lado – acima ou abaixo – das frases ou das
proposições; está sempre dentro de unidades desse gênero, ou mesmo em
sequências de signos que não obedecem as suas leis (e que podem ser listas,
séries ao acaso, quadros); caracteriza não o que nelas se apresenta ou a
maneira pela qual são delimitadas, mas o próprio fato de serem apresentadas, e
a maneira pela qual o são (FOUCAULT, 2013, p. 136).
Para
que a linguagem possa ser tomada como objeto, decomposta em níveis distintos,
descrita e analisada, é preciso que haja um “dado enunciativo” que será sempre
determinado e não infinito (FOUCAULT, 2013, p. 136).
Nem
oculto, nem visível, o nível enunciativo está no limite da linguagem: não é, em
si, um conjunto de caracteres que se apresentariam, mesmo de um modo não
sistemático, à experiência imediata; mas não é. Tampouco, por trás de si, o
resto enigmático e silencioso que não traduz (FOUCAULT, 2013, p. 137).
A
análise enunciativa não prescreve para as análises linguísticas ou lógicas o
limite a partir do qual elas deveriam renunciar e reconhecer sua impotência;
ela não marca a linha que fecha seu domínio; mas se desenrola em outra direção
que as cruza (FOUCAULT, 2013, p. 138).
Pode-se
dizer que a demarcação das formações discursivas, independentemente dos outros
princípios de possível unificação, revela o nível específico do enunciado; mas
pode-se dizer, da mesma forma, que a descrição dos enunciados e da maneira pela
qual se organiza o nível enunciativo conduz a individualização das formações
discursivas (FOUCAULT, 2013, p. 142).
Finalmente,
o que se chama “prática discursiva” pode agora ser precisado. Não podemos confundi-la
com a operação expressiva pela qual um indivíduo formula uma ideia, um desejo,
uma imagem; nem com a atividade racional que pode ser acionada em um sistema de
inferência; nem com a “competência” de um sujeito falante, quando constrói
frases gramaticais; é um conjunto de regras anônimas, históricas, sempre
determinadas no tempo e no espaço, que definiram, em uma dada época e para uma
determinada área social, econômica, geográfica ou linguística, as condições de
exercício da função enunciativa (FOUCAULT, 2013, p. 144).
Raridade, exterioridade, acúmulo
A
análise enunciativa leva em conta um efeito de raridade (FOUCAULT, 2013, p.
145).
Mostra-se
como os diferentes textos de que tratamos remetem uns aos outros, se organizam
em uma figura única, entram em convergência com instituições e práticas, e
carregam significações que podem ser comuns a toda uma época (FOUCAULT, 2013,
p. 145).
A
análise dos enunciados e das formações discursivas abre uma direção
inteiramente oposta: ela quer determinar o princípio segundo o qual puderam
aparecer os únicos conjuntos significantes que foram enunciados (FOUCAULT,
2013, p. 146).
Diferentemente
de todas essas interpretações cuja própria existência só é possível pela
raridade efetiva dos enunciados, mas que entretanto não tomam conhecimento
dela, e, ao contrário, tomam como tema a compacta riqueza do que é dito, a
análise das formações discursivas se volta para essa raridade; toma-a por
objeto explícito; tenta determinar-lhe o sistema singular; e, ao mesmo tempo,
dá conta do fato de que pôde haver interpretação (FOUCAULT, 2013, p. 147).
Eis
outro traço característico: a análise dos enunciados trata-os na forma
sistemática da exterioridade. Em geral, a descrição histórica das coisas ditas
é inteiramente atravessada pela oposição do interior e do exterior, e
inteiramente comandada pela tarefa de voltar dessa exterioridade – que não
passaria de contingência ou pura necessidade material, corpo visível ou
tradução incerta – em direção ao núcleo essencial da interioridade (FOUCAULT, 2013,
p. 148).
Ora,
a particularidade da análise enunciativa não é despertar textos de seu sono
atual para reencontrar, encantando as marcas ainda legíveis em sua superfície,
o clarão de seu nascimento; trata-se, ao contrário, de segui-los ao longo de
seu sono, ao esquecimento, à origem perdida, e de procurar que modo de
existência pode caracterizar os enunciados, independente de sua enunciação, na
espessura do tempo em que subsistem, em que se conservaram, em que são
reativados, e utilizados, em que são, também, mas não por uma destinação
originária, esquecidos e até mesmo, eventualmente, destruídos (FOUCAULT, 2013,
p. 151).
A
análise enunciativa supõe, finalmente, que se levam em consideração s fenômenos
de recorrência. Todo enunciado compreende um campo de elementos antecedentes em
relação aos quais se situa, mas que tem o poder de reorganizar e de
redistribuir segundo relações novas (FOUCAULT, 2013, p. 152).
O a priori histórico e o arquivo
A
positividade de um discurso – como o da história natural, da economia política,
ou da medicina clínica – caracteriza-lhe a unidade através do tempo e muito
além das obras individuais, dos livros e dos textos (FOUCAULT, 2013, p. 154).
Não
se trata de reencontrar o que poderia tornar legítima uma assertiva, mas isolar
as condições de emergências dos enunciados, a lei de sua coexistência em
outros, a forma específica de seu modo de ser, os princípios segundo os quais
subsistem, se transformam e desaparecem (FOUCAULT, 2013, p. 155).
A
razão para se usar esse termo um pouco impróprio é que esse a priori deve dar
conta dos enunciados em sua dispersão, em todas as falhas abertas por sua não
coerência, em sua superposição e substituição recíproca, em sua simultaneidade
que não pode ser unificada e em sua sucessão que não é dedutível; (FOUCAULT,
2013, p. 155).
O a
priori das positividades não é somente o sistema de uma dispersão temporal; ele
próprio é um conjunto transformável (FOUCAULT, 2013, p. 156).
O
domínio dos enunciados assim articulado segundo a priori históricos, assim
caracterizado por diferentes tipos de positividade e escandido por formações
discursivas distintas, não tem mais o aspecto de planície monótona e
indefinidamente prolongada que eu lhe dava no início, quando falava de
“superfície do discurso”; deixa igualmente de aparecer como elemento inerte,
liso e neutro em que vem aflorar, cada um segundo seu próprio movimento, ou
estimulados por algum dinamismo obscuro, temas, ideias, conceitos,
conhecimentos (FOUCAULT, 2013, p. 157).
O
arquivo é, de início, a lei do que pode ser dito, o sistema que rege o
aparecimento dos enunciados como conhecimentos singulares. Mas o arquivo é,
também, o que faz com que as todas as coisas ditas não se acumulem
indefinidamente em uma massa amorfa, não se inscrevam, tampouco, em uma linearidade
sem ruptura e não desapareçam ao simples acaso de acidentes externos, mas que
agrupem em figuras distintas, se componham umas com as outras segundo relações
múltiplas, se mantenham ou se esfumem segundo regularidades específicas;
(FOUCAULT, 2013, p. 158).
É
evidente que não se pode descrever exaustivamente o arquivo de uma sociedade,
de uma cultura ou de uma civilização; nem mesmo, sem dúvida, o arquivo de toda
uma época (FOUCAULT, 2013, p. 159).
A
dar a todas essas pesquisas o título de arqueologia. Esse termo não incita à
busca de nenhum começo; não associa a análise a nenhuma exploração ou sondagem
geológica. Ele designa o tema geral de uma descrição que interroga o já dito no
nível de sua existência; da função enunciativa que nele se exerce, da formação
discursiva a que pertence, do sistema geral de arquivo de que faz parte. A
arqueologia descreve os discursos como práticas especificadas no elemento do
arquivo (FOUCAULT, 2013, p. 161).
A descrição arqueológica
Arqueologia e histórias das ideias
Pode-se
agora inverter o procedimento; pode-se descer no sentido da corrente e, uma vez
percorrido o domínio das formações discursivas e dos enunciados, uma vez
esboçada sua teoria geral, correr para os domínios possíveis de aplicação.
(FOUCAULT, 2013, p. 165).
A
história das ideias se atribui a tarefa de penetrar as disciplinas existentes,
tratá-las e reinterpretá-las. Constitui, pois – mais do que um domínio marginal
-, um estilo de análise, um enfoque (FOUCAULT, 2013, p. 167).
Entre
análise arqueológica e história das ideias, os pontos de separação são
numerosos [...] a propósito das descrições comparativas; a propósito, enfim, da
demarcação das transformações (FOUCAULT, 2013, p. 169).
A
arqueologia busca definir não os pensamentos, as representações, as imagens, os
temas, as obsessões que se ocultam ou se manifestam nos discursos, mas os
próprios discursos, enquanto práticas que obedecem as regras (FOUCAULT, 2013,
p. 169).
A
arqueologia não é nada além e nada diferente de uma reescrita: isto é, na forma
mantida da exterioridade, uma transformação regulada do que já foi escrito. Não
é o retorno ao próprio segredo da origem; é a descrição sistemática de um
discurso-objeto (FOUCAULT, 2013, p. 171).
O
original e o regular
Em
geral, a história das ideias trata o campo dos discursivos como um domínio de
dois valores; todo elemento que aí demarcado pode ser caracterizado como antigo
ou novo; inédito ou repetido; tradicional ou original; semelhante a um tipo
médio ou desviante (FOUCAULT, 2013, p. 172).
Podem-se,
pois, distinguir duas categorias de formulações: a primeira é aquela valorizada
e relativamente pouco numerosas, que aparece pela primeira vez, que não têm
antecedentes semelhantes, que vão eventualmente servir de modelo às outras
[...] a segunda são aquelas banais, cotidianas, maciças, que não são
responsáveis por si mesmas e que derivam, às vezes para repeti-lo textualmente,
do que já foi dito (FOUCAULT, 2013, p. 172).
É
verdade que, entre as duas instâncias, a história das ideias não deixa de determinar
relações; jamais se encontra uma das análises em estado puro: ela descreve os
conflitos entre o antigo e o novo, a resistência do adquirido, a repressão que
este exerce sobre o que nunca tinha sido dito, os recobrimentos pelos quais o
mascara, o esquecimento a que, às vezes, consegue condená-lo; mas descreve,
também, as facilitações que, obscuramente e de longe, preparam os discursos
futuros (FOUCAULT, 2013, p. 173).
Uma
certa forma de regularidade caracteriza, pois, um conjunto de enunciados, sem
que seja necessário – ou possível – estabelecer uma diferença entre o que seria
novo e o que não seria [...] Temos, portanto, campos homogêneos de
regularidades enunciativas (eles caracterizam uma formação discursiva), mas
tais campos são diferentes entre si (FOUCAULT, 2013, p. 177).
Vimos
que todo enunciado se relaciona a uma certa regularidade – que nada, por
conseguinte, podia ser considerado como pura e simples criação, ou maravilhosa
desordem do gênio. Mas vimos, também, que nenhum enunciado podia ser
considerado como inativo e valer como sombra ou decalque pouco reais de um
enunciado inicial (FOUCAULT, 2013, p. 179).
A
arqueologia pode assim – e eis um de seus temas principais – constituir a
árvore de derivação de um discurso, por exemplo, o da história natural
(FOUCAULT, 2013, p. 180).
Nas
tão confusas unidades chamadas “épocas”, ela faz surgirem, com sua
especificidade, “períodos enunciativos” que se articulam no tempo dos
conceitos, nas fases teóricas, nos estágios de formalização e nas etapas de evolução
linguística, mas sem se confundir com eles (FOUCAULT, 2013, p. 182).
As contradições
A
história das ideias, normalmente, dá um crédito de coerência ao discurso que
analisa. Será que lhe ocorre constatar uma irregularidade no uso das palavras,
diversas proposições incompatíveis, um jogo de significações que não se ajustam
umas às outras, conceitos que juntos não podem ser sistematizados? Ela se
encarrega de encontrar, em um nível mais ou menos profundo [...] (FOUCAULT,
2013, p. 183).
Analisando
a verdade das proposições e as relações que as unem, podemos definir um campo
de não contradição lógica: descobriremos, então, uma sistematicidade;
remontaremos do corpo visível das frases à pura arquitetura ideal que as
ambiguidades da gramática, a sobrecarga significante das palavras, mascararam,
sem dúvida, tanto quanto traduziram (FOUCAULT, 2013, p. 184).
Certas
contradições localizam-se apenas no plano das proposições ou das assertivas,
sem afetar em nada o regime enunciativo que as tornou possíveis (FOUCAULT,
2013, p. 188).
Uma
contradição arqueologicamente intrínseca não é um fato puro e simples que
bastaria constatar como um princípio ou explicar como um efeito. É um fenômeno
complexo que se reparte em diferentes planos da formação discursiva (FOUCAULT,
2013, p. 189).
Uma
formação discursiva não é, pois, o texto ideal, contínuo e sem aspereza, que
corre sob a multiplicidade das contradições e as resolve na unidade calma de um
pensamento coerente; não é, tampouco, a superfície em que vem refletir, sob
aspectos diferentes, uma contradição que estaria sempre em segundo plano, mas
dominante (FOUCAULT, 2013, p. 191).
Os fatos comparativos
A
análise arqueológica individualiza e descreve formações discursivas, isto é,
deve compará-las, opô-las umas as outras às outras na simultaneidade em que se
apresentam, distingui-las das que não tem o mesmo calendário, relacioná-las no
que podem ter de específico com as práticas não discursivas que as envolvem e
lhes servem de elemento geral (FOUCAULT, 2013, p. 192).
A
arqueologia: uma análise comparativa que não se destina a reduzir a diversidade
dos discursos nem a delinear a unidade que deve totalizá-los, mas sim a
repartir sua diversidade em figuras diferentes (FOUCAULT, 2013, p. 195).
A
arqueologia situa sua análise em um outro nível: os fenômenos de expressão, de
reflexos e de simbolização são, para ela, apenas os efeitos de uma leitura
global em busca das analogias formais ou das translações de sentidos; quanto as
relações causais, elas só podem ser assinaladas no contexto ou da situação e de
seu efeito sobre o sujeito falante (FOUCAULT, 2013, p. 199).
A mudança e as transformações
O
que se passa, hoje, com a descrição arqueológica da mudança? Seria possível
fazer à história tradicional das ideias todas as críticas teóricas que se
quisesse ou pudesse: pelo menos para si, ela tem de tomar por tema essencial os
fenômenos de sucessão e de encadeamento temporais, de analisá-los conforme os
esquemas de evolução e de descrever, assim, o desenrolar histórico dos discursos
(FOUCAULT, 2013, p. 202).
A
arqueologia não tenta tratar como simultâneo o que se dá como sucessivo; não
tenta imobilizar o tempo e substituir seu fluxo de acontecimentos por
correlações que delineiam uma figura imóvel (FOUCAULT, 2013, p. 205).
A arqueologia,
em vez de considerar que o discurso é feito apenas de uma série de
acontecimentos homogêneos (as formulações individuais), distingue, na própria
densidade do discurso, diversos planos de acontecimentos possíveis: plano dos
próprios enunciados em sua emergência singular; plano de aparecimento dos
objetos, dos tipos de enunciação, dos conceitos, das escolhas estratégicas (ou
das transformações que afetam as que já existem); plano da derivação de novas
regras de formação a partir de regras já empregadas (FOUCAULT, 2013, p. 208).
A
arqueologia desarticula a sincronia dos cortes, como teria desfeito a unidade
abstrata da mudança e do acontecimento. A época não é nem sua unidade de base,
nem seu horizonte, nem seu objeto; se fala sobre ela, é sempre a propósito de
práticas discursivas determinadas e como resultado de suas análises (FOUCAULT,
2013, p. 213).
Ciências e saber
Uma
delimitação silenciosa se impôs a todas as análises precedentes, sem que se
tenha apresentado seu princípio, sem mesmo que seu desenho tenha sido precisado
(FOUCAULT, 2013, p. 214).
A
arqueologia não descreve disciplinas. Estas, no máximo, em seu desdobramento
manifesto, podem servir de isca para a descrição das positividades; mas não lhe
fixam os limites: não lhe impõem recortes definitivos; não se encontram
inalterados no fim da análise; não se pode estabelecer relação biunívoca entre
as disciplinas instituídas e as formações discursivas (FOUCAULT, 2013, p. 215).
O saber
Um
saber é aquilo que podemos falar em prática discursiva que se encontra assim
especificada: o domínio constituído pelos diferentes objetos que não irão
adquiri ou não status científico (o saber da psiquiatria, no século XIX, não é
a soma do que se acreditava fosse verdadeiro; é o conjunto das condutas, das
singularidades, dos desvios de que se pode falar no discurso psiquiátrico); um
saber é, também, o espaço em que o sujeito pode tomar posição para falar dos
objetos de que se ocupa em seu discurso (nesse sentido, o saber da medicina
clínica é o conjunto das funções de observação, interrogação, decifração,
registro, decisão, que podem ser exercidas pelo sujeito do discurso médico); um
saber é também o campo de coordenação e de subordinação dos enunciados
(FOUCAULT, 2013, p. 220).
Saber e ideologia
O
saber não é o canteiro epistemológico que desaparecia na ciência que o realiza
(FOUCAULT, 2013, p. 222).
A
ideologia não exclui a cientificidade. Poucos discursos deram tanto lugar à
ideologia quanto o discurso clínico ou o da economia política: não é uma razão
suficiente para apontar erro, contradição, ausência de objetividade no conjunto
de seus enunciados (FOUCAULT, 2013, p. 224).
Estudar
o funcionamento ideológico de uma ciência para fazê-lo aparecer e para
modificá-lo não é revelar os pressupostos filosóficos que podem habitá-lo, não
é retornar aos fundamentos que a tornaram possível e que a legitimam: é
colocá-la novamente em questão como formação discursiva (FOUCAULT, 2013, p.
224).
Os diferentes limiares e sua cronologia
A
propósito de uma formação discursiva, podem-se descrever diversas emergências
distintas. O momento a partir do qual uma prática discursiva se individualiza e
assume sua autonomia, o momento, por conseguinte, em que se encontra em ação um
único e mesmo sistema de formação dos enunciados, ou ainda o momento em que
esse sistema se transforma, poderá ser chamado limiar de positividade
(FOUCAULT, 2013, p. 223).
Sua
cronologia, na verdade, não é nem regular nem, nem homogênea (FOUCAULT, 2013,
p. 225).
Cada
formação discursiva não passa, sucessivamente, pelos diferentes limiares como
pelos estágios naturais de uma maturação biológica em que a única variável
seria o tempo de latência ou a duração dos intervalos (FOUCAULT, 2013, p. 225).
Os diferentes tipos de história das
ciências
Os
múltiplos limiares que puderam ser demarcados permitem formas distintas de
análise histórica. De início, no nível da formalização: é essa a história que a
matemática não deixa de contar sobre si mesma, no processo de sua própria
elaboração (FOUCAULT, 2013, p. 228).
Outras arqueologias
A
arqueologia só se ocupa das ciências e nunca passa de uma análise dos discursos
científicos? E responder duas vezes não. O que a arqueologia tenta descrever
não é a ciência em sua estrutura específica, mas o domínio, bem diferente, do
saber (FOUCAULT, 2013, p. 236).
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